CHEGAR OU ESTAR?

Por Milene Mizuta

 

Primeiro quero dizer que esse texto foi escrito porque uma mulher, no nordeste desse país, mais especificamente na cidade de Natal, foi violentada, quando tentava fazer algo que trata-se de um processo natural da vida, o processo de parir. Nesse momento tudo que eu gostaria era dar um abraço nela, não dizer nada, nem perguntar nada, só dar um abraço e afagar seu cabelo.

Através da Antroposofia, ciência que escolhi como caminho de vida, quero trazer o que entendo sobre esse momento do parto. Durante nossa existência existem dois “portais” que adentramos que nos tornam humanos. O primeiro é no dia do nascimento, entramos nesse mundo de forma totalmente inconsciente, somos paridos por alguém, nascemos com uma matéria tão singela e plástica que quando nos deparamos com um recém-nascido temos a impressão que aquele corpo pode ser modelado, e é isso que realmente acontece, fisiologicamente nosso organismo vai “terminar” de amadurecer fora do útero, minha fontanela vai ser fechada, meus órgãos sensórias se abrirão para o mundo, meus órgãos serão totalmente influenciados pelo meio em que vivo e assim terminarão de se desenvolver, esse desenvolvimento termina especificamente próximo aos 21 anos, quando atingimos a maioridade, até lá, tudo ao me redor me forma.

Quando acabamos de nascer, somos como que esponjas que vamos absorvendo tudo que existe ao nosso redor, o bebê é um órgão sensorial em todas as partes do seu corpo, ela vivencia o prazer e o desprazer, esses sentimentos ficam em sua alma e passam a ser um filtro para o mundo. A criança sente o que sua mãe sente, os sentimentos presentes na alma de sua mãe no momento do nascimento fazem com que a criança vivencie a sua chegada ao mundo daquela forma. O sentimento torna-se um filtro de como o mundo o recebe, uma mãe que sofre medo e violência no momento do parto, gera um sentimento de um mundo duro e frio, onde a criança não quer estar, uma mãe que se sente incapaz de parir, que entrega todo esse processo na mão da medicina, pode trazer um sentimento de insegurança e descrença nos processos da vida, mas fora isso, podemos ter mais mil variações do mesmo tema, atendo adultos que carregam filtros sobre a vida, que são desvelados a partir do seu nascimento que tenho até medo de dizer, e tudo isso fica guardado lá no inconsciente e que não podemos apagar, somente lidar com eles para o resto da vida. Esse é nosso primeiro portal.

O segundo é no momento de nossa morte. Sim, só nos tornamos seres humanos quando através da nossa biografia vivenciamos – e não entendemos – todos os mistérios que nos compõe quanto ser humano, e a morte, é um deles. Não é possível se tornar humano sem morrer, porque a morte faz parte da existência humana. Diferente da criança que chega inconsciente, adentramos no portal da morte de forma totalmente consciente, sabendo quem somos. Dias antes da morte o indivíduo vivencia, quase que na maioria dos casos, um fenômeno chamado pela medicina de “melhora da morte”, pacientes desenganados, abruptamente tem uma melhora, o que faz com que na maioria dos casos a família “relaxe”, e se afaste emocionalmente daquele indivíduo, quando isso acontece, ele morre, assim como no nascimento, a morte é um processo que esta diretamente ligado a laços emocionais e não somente físicos. Isso nos mostra claramente que se tornar humano é em resumo, vivenciar os processos da vida. Para nascer existe um processo, a gravidez, o trabalho de parto, o parto, o pós parto. O bebê só se torna bebê quando vivencia o processo de mamar, necessitar de cuidados, chorar, descobrir suas próprias mãos, quando esta junto a sua mãe, a criança só se torna criança quando brinca, quando chora, quando vai para escola, quando perde os dentes, quando descobre seu primeiro amor, o adolescente só se torna adolescente quando contrapõe o sistema, quando se rebela contra o mundo, quando sente os hormônios sexuais em ebulição, quando ouve sua primeira banda de rock, quando dá seu primeiro beijo, o Jovem só se torna jovem quando entra na faculdade,  quando tem seu primeiro emprego, quando disputa coisas com outros, o adulto só se torna adulto quando encontra um lugar no mundo, quando encontra um parceiro, quando chora por amor, quando entra em sua casa, quando se questiona sobre o sentido da vida, quando paga suas contas e dá conta de seu nariz, o ancião só se torna ancião, quando aceita sua história, quando dá importância ao que é essencial, quando redescobre a fé, quando ouve mais que escuta, quando aceita velhice, quando envelhece, quando adoece. E tudo isso demora, leva tempo, não pode ser feito da noite para o dia. Tudo isso chama-se processo. E aceitar que a vida é um processo é viver o hoje, e dar espaço para ele acontecer. Se nascer é um processo, oito horas de trabalho de parto podem ser pouco, se viver é um processo, uma vida inteira pode ser pouco, se morrer é um processo, anos podem ser pouco. Viver o processo é viver a vida, simples assim. Essa menina que pedia desesperadamente por um parto humanizado, estava dizendo nas entrelinhas: “Eu quero viver o processo!!”. Ela queria nada mais que olhar para trás em sua vida e se lembrar de todas as dores, medos, alegrias e maravilhas do nascimento do seu primogênito. Ela queria se conectar com seus sentimentos através daquele processo. Ela queria viver o nascimento de seu filho e não simplesmente passar por ele. E por esse motivo não queremos vivenciar o processo, porque vivenciar o processo é inevitavelmente nos conectar com nossos sentimentos, quando vivenciamos uma situação em nossas vidas de forma processual, passo a passo, vão surgindo em nossas almas sentimentos. Dentro de um processo eu consigo conectar aquilo que penso e aquilo que sinto através de vivências terrenas. Trazendo para exemplos práticos, podemos dizer que compreender o que é um parto através de informações científicas é uma parte do processo, a outra parte diz respeito a vivência na prática, sentir o que aquilo causa,  elaborando essas duas coisas eu tenha no futuro a capacidade de fazer de forma plena e livre novas escolhas para meu caminho.

A vida não é um objetivo, ela não é uma meta, ela é um processo, não existe um lugar a se chegar, existem processos a serem vividos que vão se somando de forma paulatina e que ao final da vida me dão a consciência de quem eu sou. Somos uma somatória de processos; o processo de aprender a andar, o processo de aprender a falar, o processo de entrar na escola, o processo de ler, o processo de se apaixonar, o processo de se “desapaixonar”, o processo de aprender a amar, aprender a perdoar, aprender a viver junto, aprender a dizer não, aprender a confiar, aprender a dizer sim, aprender a ser mãe, aprender a ser pai, aprender a ser só, aprender e desaprender, para todas as coisas existem processos que acontecem no tempo. Temos o sentimento de que o tempo é escasso, procuramos tempo, eliminamos coisas, diminuímos o tempo das coisas, e o sentimento de vazio aumenta mais e mais. Não podemos perder tempo em chorar, sentir, doer, cansar, cair, tiramos de nós a possibilidade de viver uma vida cheia de significado, cheia de experiências plenas, cheia de lembranças calorosas, tiramos de nós a possibilidade de sermos as experiências que vivemos e estamos nos tornando uma somatória de dados que ao final do dia, da semana e do mês não nos levaram a lugar algum. Porque a vida não é um lugar a se chegar, a vida é um lugar a se estar. E nisso mora a grandiosidade e a beleza de ser humano, conseguimos através de nossos sentimentos viver o presente, conseguimos no primeiro beijo, no afago ao filho, na alegria do encontro com amigos, vivenciar a plenitude do agora, que torna aquele momento atemporal, nos acompanhando por toda vida e além dela.

Voltando a mulher e ao médico que me inspiraram esse texto, a essa mulher eu desejo que ela viva o processo da dor que lhe foi causada e perceba que ela na mais pura essência humanizou seu parto, buscando incansavelmente vivenciar o processo e o vivenciou tão profundamente que nos tocou e nos tornou mais humanos. E ao médico eu desejo que no momento de sua morte, ele esteja em casa, sem tubos, sem macas, rodeado de amores e afetos ao seu lado, pacientemente o acompanhando nesse momento, mostrando para ele que a vida é feita disso, de se dar tempo para que o indivíduo alcance sua mais linda tarefa, a de se humanizar vivenciando os processos da vida.

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