PARTITURA OCULTA

Contribuição: Márcia Della Negra

Lembro-me de estar sentada nos degraus da escada, da porta da rua, da casa de uma de minhas amigas.
Era 1955, tínhamos 9 anos, fim de tarde.
Como de costume tínhamos tomado banho e colocado nossos vestidinhos, agora aguardávamos o chamado de nossas mães para o Jantar.
Conversávamos como duas meninas podem conversar.
Eis que subindo pela rua vem um homem jovem. Cambaleia, se aproxima de nós e não lembro como, mas começamos a conversar com ele.
Senta-se na escada no meio de nós duas.
Conta-nos a sua história, uma vida destruída pela bebida, nos fala da mulher e dos filhos…
Éramos 2 meninas ouvindo uma história que mal compreendíamos, mas que em algum ponto de nossas jovens almas, nos tocava profundamente.
Não sei lhes dizer como essa vivência inusitada repercutiu sobre a vida de minha amiga, em mim mobilizou um pedido de ajuda a meu pai que é médico.
Seguramente ele saberia o que fazer e como ajudar esse jovem, mas ele não sabia…
Nunca mais o encontramos, embora tenha pensado nele em muitas ocasiões.
Não lembro exatamente, mas um pouco antes desse acontecimento, tive um sonho que permaneceu vivo em minha memória, como uma pergunta que não conseguia responder.
No sonho, um dos padres, amigo de meus pais, que estiveram muito presentes do meu nascimento até os 5 anos, me conduzia pela mão e me colocava dentro de um relógio enorme, daqueles antigos, que tinha uma porta onde ficava o pêndulo, e lá ficava eu, presa dentro de um relógio.
Muitos anos depois, esses tesouros escondidos nos acontecimentos de minha vida, se ligaram a outros, todos eles relacionados ao segundo setênio, entre os 7 e 14 anos.
Um deles diz respeito a uma pergunta formulada por meu pai, para suas 3 filhas: Qual coleção de livros gostaríamos de ganhar como presente?
Minha irmã mais velha, escolheu “ Tesouros da Juventude” uma bela coleção da capa azul, minha irmã mais nova “O Mundo da Criança” com sua capa vermelha e eu escolhi “Grandes Vocações” que nos conta a Biografia dos grandes inventores, cientistas, apóstolos modernos, empreendedores e libertadores. Cada livro de uma cor.
O que li nesses livros me inspirou para toda a vida.
Prefácio do livro sobre os Inventores:
“A história da humanidade é a soma de histórias de indivíduos, ligadas umas às outras pelos elos de heranças culturais.”
Prefácio do livro sobre os apóstolos modernos:
“ Você sabe ler?…. se você gosta de ler… (vai) descobrir o que de bom e belo encerra um livro como este, especialmente feito para jovens como você…Quero apresentar-lhe aqueles que o escreveram, pensando na juventude que busca- e dificilmente encontra na sociedade moderna- padrões, modelos dignos de serem imitados.”
“Os libertadores, inventores, cientistas e apóstolos modernos foram homens que escolheram o seu próprio destino, pela vocação, e acertaram na escolha.”
Esses livros me ajudaram a encontrar muitas respostas para todos os porquês que surgem no segundo setênio. Com as maravilhosas biografias de seres humanos inspiradores, pude alimentar minha alma de menina tímida com inúmeras possibilidades para enfrentar a vida com coragem e determinação.
A vida era bela, tinha um sentido, me sentia unida ao mundo, no que ele tinha de mais belo e valoroso através dessas biografias. Não mais presa dentro de um relógio.
Não considero, sob nenhum ponto de vista, que minha biografia tenha algo de especial e sim que ela reflete, como tantas outras, que há uma partitura oculta, que traz em si um música dedicada a cada ser humano, regida por um maestro invisível que conduz nossas vidas a cada setênio em sincronia com as leis que regem todas as biografias.
Hermann Koep, em seu livro “A criança aos 9 anos. A queda do paraíso.” nos alerta que nessa fase da vida a criança pela primeira vez começa a ter uma noção de tempo, passado e futuro, o que acontece quando “caímos do paraíso da primeira infância”,
mas é nesse momento que a criança precisa de algo que a religue ao mundo perdido, que “ela possa colher na terra o fruto da saída do paraíso.”
Através da Retrospectiva Biográfica fui percebendo a teia que se tecia em minha biografia, evidenciada nos acontecimentos e encontros.
Sementes plantadas nos acontecimentos que descrevi.
Espero que esse relato sirva de inspiração para os que buscam entender suas vidas também através da escrita invisível.
Assim é a vida humana, misteriosa em seus meandros, tal qual uma floresta para quem não a conhece, mas rica para quem se dedica a compreender as leis que regem as biografias e a maneira como cada um de nos lida com essas leis nas nossas historias pessoais.
Talvez algumas das pessoas que leiam esse artigo, possam encontrar em suas vidas, por volta dos 9 anos, uma situação que as tenha marcado profundamente e tenha sido determinante na direção em que os interesses se manifestaram na vida futura. Acredito que meu interesse por biografias surgiu do evento que relatei acima, o que me levou a fazer a formação em Psicologia e posteriormente em Aconselhamento Biográfico.
Se olharmos para os encontros que tivemos durante nossa vida, os que nos trouxeram alegrias e oportunidades e os que nos levaram ao sofrimento e dor, poderemos aprender muito sobre nós mesmos.
Tudo o que nos acontece e vem ao nosso encontro diz respeito a pessoa que somos, o protagonista, os outros são coadjuvantes.
Quais segredos descobriremos ao estudar nossa biografia?
Será que tudo se deve ao mero acaso ou existe um sentido no caminho que trilhamos?
Buscar o sentido de nossas vidas é conhecer a si mesmo.

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