Hoje tive que buscar alguns dados para colocar numa proposta de trabalho e pedi para o ChatGPT rastrear links onde um dos meus programas poderia ter sido citado.
Foram inúmeros, mais do que eu esperava para o momento: em português, em inglês, de grandes corporações a estudos acadêmicos, onde o que eu criei era citado como referência.
De repente comecei a chorar. Você deve pensar que foi de emoção — inicialmente eu também pensei —, mas o que me vinha era um gosto amargo na boca. Em um dos artigos publicados no LinkedIn eu sequer pude escrever: “Viu? Esse programa é meu, eu que criei.”
Num trabalho profundo de reflexão — que agora não está mais acompanhado do meu cigarro, e isso dificulta um pouco — percebi que eu chorava, lá no fundo, de tristeza. Porque me dei conta de que algo havia roubado a minha exponencial carreira, que estava ali diante de mim.
Sem modéstia: quem trabalha comigo sabe que sou uma criadora nata. Tenho um olhar aguçado para tudo que diz respeito ao desenvolvimento humano. Identifico, analiso e crio soluções no campo da alma humana tão rapidamente quanto alguém programa uma página web.
Sou profunda e tenho muita apropriação quando falo sobre isso. Sei que caminho seguir. Esse mundo das relações é um campo de tão fácil leitura para mim que fez de mim uma das pessoas mais sociáveis que conheço e, por consequência, mais amada que odiada.
Mas mesmo com toda essa genialidade eu fiquei à margem — e isso devo à minha maternidade.
Eu não pude fazer intercâmbios que me proporcionariam outros idiomas. Nunca pude lançar-me ao mundo do conhecimento e das experiências, trocar com pessoas do mundo inteiro. Não pude arriscar, e se desse errado voltar, porque ao meu lado sempre havia uma criança.
Meus filhos.
Com eles a tiracolo, no sling, com febre, com fome, fui fazendo o que era possível. Viajando como dava, dentro do limite da responsabilidade de estar de volta para cuidar de alguém que eu havia parido e de quem dependia a vida.
Perdi inúmeros happy hours e oportunidades de conhecer novas coisas e de ser a jovem promissora. Não falo de ser executiva de uma grande corporação — isso refutei e refuto até hoje. Falo de ganhar horizontes e ser reconhecida pelo grande talento que tenho, não de gerir, mas de criar.
Parece arrogante, mas não é. É triste, bem na verdade.
Porque assim como eu, são muitas. São milhares.
E como meus filhos se sentem lendo esse texto?
Bem, creio eu. Porque o que escrevo nada tem a ver com eles.
Já disse inúmeras vezes e repito quantas forem necessárias: os meus filhos são aquilo que mais amo nesta vida. Mas ser mãe, nesta maternidade, é uma das coisas que mais detesto.
Comecei o texto dizendo justamente isso: o que roubou de mim minha carreira foi a maternidade, e não meus filhos.
A maternidade é um produto da sociedade que serve de opressão para TODAS as mulheres: um lugar de castração e dor, de vazio, silêncio e solidão.
A maternidade solitária, sem vida em comunidade, é o mecanismo mais sujo já criado para aprisionar uma mulher, cortar suas asas e retirar dela o direito de seguir.
A maternidade como cuidado e a paternidade como conquista foi a arma mais voraz de apartar a mulher do mundo.
Para que hoje meu trabalho pudesse ao menos ser visto e existir no mundo, tive que perder relações, enlouquecer em algum grau, lutar contra muita coisa. Seguir trabalhando, ainda que não fosse o esperado pelo mundo. Tive que, às vezes, abandonar meus filhos e sofrer as consequências disso. Tive que escolher ser malvista em vez de ser totalmente apagada. Eu pari, criei, sustentei, sofri e sofro violência de gênero.
Porque você deve viver como se não tivesse filhos e criar filhos como se não pudesse viver.
Não estou exagerando. É assim.
Sempre digo que mulheres que optam por não ter filhos não o fazem pelas crianças. Fazem pela maternidade. Elas negam a maternidade, e não a progenitura de uma nova vida.
A maternidade mata quem a escolhe, e mata quem a rejeita. Porque em ambos os casos você sofre a consequência da escolha.
Se escolhe, o que você foi morre.
Se não escolhe, adoece, porque seu corpo foi feito para parir.
Posso dizer que não me arrependo porque meus filhos estão bem.
Mas isso é o que dizemos para dar conta do que fizeram conosco, do que fizemos conosco.
Não se trata de arrependimento. É sobre aceitar que o que perdi, perdi. E que meus filhos estarem bem não compensa nada.
Porque não é sobre compensação este texto. É sobre justiça, verdade e coragem.
E digo isso porque, quando falamos em compensação, aí sim estamos sendo cruéis com nossos filhos. Como se eles tivessem que estar sempre a contento pela vida que dediquei a eles e não a mim.
“Meus filhos estão bem” é um consolo que esconde, por trás, uma dor irremediável. E para os filhos, uma necessidade de estarem bem em um mundo onde poder estar mal é condição para manter a integridade mental.
Outro mecanismo da lógica capitalista: compensação, pagamento, retribuição.
A solução disso tudo não é, agora com os filhos maiores, recuperar a carreira. Seria cair de novo na lógica do “remediável”.
A solução é falar sobre isso.
Falar que você perdeu.
Mãe, falar que você adoeceu.
Mãe, falar que deixou de lado sua vida porque não teve apoio.
Mãe, dizer que sua genialidade ficou.
Mãe, chorar pelo leite derramado.
Chorar e sentir muito por você.
E nunca mais dizer que você “investiu” nos filhos. Algo foi roubado de você e entregue ao mercado. Para que você acreditasse nisso, usaram seus filhos como moeda de troca.
O que sempre quiseram foi nos fazer parir sem dividir a lida.
Porque a lida de criar gente é sim para quem tem coração.
E a única coisa que digo, ao final de tudo, é que isso não me roubaram.
Se eu teria feito tudo de novo? Meu coração diz que sim. Teria.
Teria.
Termino falando desta obra esplêndida de Käthe Kollwitz, que retrata a maternidade.
Käthe foi uma artista que ousou colocar no papel e na tela a vida durante a guerra.
Mas seria você capaz de dizer que esta imagem não retrata, todos os dias, o drama da maternidade em qualquer rincão deste país?
Ou que não retrata, talvez, a maternidade em algum rincão dentro de você?
Dói, mas sim.
Käthe desenhou, como poucas, o que é a maternidade.