Todo mês, vejo escorrer pela minha perna um fio vermelho de sangue que me acompanhou por dezenas de anos. E me pergunto se essa será esta a última vez.
Será esse o último fio do tecido da cortina que, por quase toda a minha vida, me protegeu da realidade nua e crua de se viver?
Enquanto o sangue vivo escorre por nós, mulheres, a cada mês, ele nos dá a certeza libido — essa energia simbólica do desejo — ainda nos mantém em movimento.
Porque ainda nos importa o olhar do outro, para que possamos construir o nosso próprio olhar sobre nós.
O tempo de ser fértil, de produzir, reproduzir, desejar, nos faz amar o outro criando fantasias sobre quem somos e quem os outros são.
Agora, meu medo mora nesse olhar: o de cada dia em que esse fio se esvai pelo ralo do banho — e com ele, talvez, o tempo da vida em que eu ainda acreditava em todos os meus sonhos e fantasias que me mantinham crente.
A cada fio que se desfaz dessa cortina, menos me veem. O viço da beleza se esvai.
Pouco a pouco, fico com o que restou de mim. E tento, às duras penas, ter fé e coragem para me encarar, e lidar com a dor de deixar de ser o desejo desse “grande outro” que sustentou minha permanência neste mundo.
A cabeça não enevoa, como querem nos convencer.
O que acontece quando chega o tempo de despedir-se da função de ser produto para consumo, é que a visão — antes turvada por tudo o que poderíamos ser ou conquistar — enfim se abre à luz imensa e quase cegante da vida real.
Isso não enevoa.
Isso perturba.
Isso abala, desequilibra, dói.
A vida sábia encerra o tempo da fantasia para que a mulher possa sobreviver.
A mulher é a continuidade da vida quando pari.
Mas é a perpetuação da história quando envelhece.
Quando ela deixa de querer se ver pelo olhar do outro, e para de esvair sua força tentando sustentar a perturbação de viver para corresponder ao desejo alheio — ela se torna legado.
Não mais continuidade, mas permanência.
Não mais promessa, mas esteio.
Longevidade.
História que construiu nossa existência.
A mulher é o folclore.
A tradição.
A que gerou.
Ela é a memória do mundo.
A mulher que não sangra deixou o tempo de servir.
A libido já não sustenta mais a fantasia que inventamos para suportar o mundo.
Agora, a única coisa que sustenta a existência é o “deus” que ela é capaz de ver através dela.
Meu medo?
Por ora, que, quando vier o último fio, eu seja capaz de suportar a mulher que assomará por detrás dessa cortina.
E que eu seja capaz de perpetuar a vida que restar em mim.
Que eu consiga esquecer o outro.
E me lembre, enfim, de mim.
Quando eu parar de sangrar, quero deixar de ser mulher — essa narrativa em eterna construção pelo olhar alheio.
Quero tornar-me história.
Minha história.
E poder contá-la e recontá-la como parte do seguimento da existência.
Porque no ciclo que rege a eternidade, quando não se sangra mais, encontra-se o infinito. O tempo do “para sempre”.
A mulher que não sangra… virou eterna.
Ela não morre mais.
Ela é legado.
P.: Gosto muito dessa pintura de Rothko que se chama Vermelho Claro sobre Vermelho Escuro.
Ela representa, para mim, essa cortina que o vermelho vivo cria em nós para nos ajudar a sobreviver — e esse escuro ao fundo, que nos atordoa por não enxergarmos mais o que fomos, mas apenas aquilo que somos.
Rothko dizia: “As pessoas que choram diante das minhas pinturas estão tendo a mesma experiência religiosa que eu tive quando as pintei.”
Olhar para essa obra e lembrar do meu ciclo me faz chegar nesse lugar de quase encontrar Deus.
Como já dizia Criolo: “Não precisa morrer para ver Deus.”