Meu texto dessa vez, quer pedir desculpas publicamente e propor um acordo de paz, mas como sempre vou ter que explicar tudo bem bonitinho para não complicar mais do que já é complexa a questão. Então vou começar com uma frase: Sinto muito, mas não deu…
Quando eu nasci, primeira filha, a expectativa da família é que viesse um homem. Sinto muito, mas não deu.
Nasci em uma família de um lado oriental cheia de valores e bons costumes e do outro lado, italianos religiosos fervorosos. Já que não rolou de ser homem que ao menos eu fosse delicada e feminina, minha mãe me colocou no ballet, mas com 9 anos a professora falou que eu era muito desengonçada e distraída, ainda assim minha mãe achou que falando comigo eu melhoraria. Sinto muito, mas não deu.
Na escola eu aprendi a ler e a escrever no primeiro semestre, fui a melhor aluna da sala, mas como gostava muito de brincar com pessoas que tinham problemas chamados “sociais” na época a professora dizia para minha mãe que era bom cuidar disso porque era muito boa para ficar com “aquele tipo” de gente, não aceitei nada daquilo, tinha tudo para ser um exemplo. Sinto muito, mas não deu.
Na adolescência tentei jogar vôlei nas aulas de educação física, de todos os esportes era o que todas as meninas gostavam mas achava aquilo tudo tão chato, que fui jogar Handball, esporte considerado “violento”. Era para ser vôlei sinto muito, mas não deu.
Fui para igreja nas aulas de primeira comunhão, mas hoje posso dizer que achava tudo aquilo uma coisa de maluco, alguém me dizer o que pode ou o que não pode, foi ali que descobri que falava super bem e um dia me disseram que deveria fazer uma apresentação, tudo que consegui foi fazer um link sobre a natureza e Deus pai, pecado e o escambau, não rolou…Sinto muito, mas não deu.
Comecei a “namorar” muito cedo apesar de ouvir que meninas tinham que ser recatadas e que jamais poderiam ser mal faladas, eu não conseguia, quando me dava conta já estava arrastando um bonde escancarado para o primeiro menino que achava bonitinho. Resultado: Fiquei mal falada. Sinto muito, mas não deu.
Minha mãe tentou me recuperar me mandando para um seminário de jovens, mas a menina que sentava do meu lado só falava sobre a primeira relação sexual dela e como tinha sido boa, juro por tudo que tenho de sagrado, eu tentei naqueles cinco dias me concentrar nos ensinamentos para ser uma pessoa melhor, mas tudo que eu tinha decidido é que queria experimentar “aquilo” que a menina tinha me contado…sinto muitíssimo, mas não deu mesmo.
Meninas não saiam a noite na minha adolescência, mas eu, eu não conseguia era sair ainda noite de lugar algum. Tentei algumas vezes juro, sinto muito, mas não deu.
Meninas tinham que casar virgem, vou parar por aqui, sinto muito mas logo no início já não deu.
Traí meu primeiro namorado, juro, tentei ser fiel. Sinto muito, mas não deu.
Tentei beijar poucas bocas, negar algumas vezes…sinto muito, mas não deu, já tinha perdido a conta aos 19 anos.
Tentei não ser amiga de gays ou namorar pobres, negros e burros essa galera da “margem”, sinto muito mas, não deu.
Me formei e tentei entrar no mercado de trabalho e ganhar muito dinheiro para construir patrimônio, “pensar no futuro”, mas tudo que começava não me dava prazer e eu parava, juro que me esforcei tantas vezes para me estabilizar e tentar ser feliz na minha aposentadoria, mas…sinto muito, não deu.
Tentei arrumar um bom partido para casar, mas o resultado foi um filho sozinha aos vinte e quatro anos. Cara, te juro eu tentei e como tentei, sinto muito mesmo, mas não deu.
Tentei ter um parto “decente”, mas fiz cocô em todo o quarto, porque meu filho escorregou perna abaixo e eu não quis tomar analgesia, porque queria mesmo era que aquele guri nascesse logo, não queria ninguém perto, me achava “dona” do meu corpo, que absurdo… tentei fazer desse momento um momento sublime, sinto muito, mas não deu.
Minha família acreditava que demonstrações de amor estão diretamente vinculadas a sua presença física em festas, comemorações e afins e aos 25 anos com um filho de oito meses resolvi tentar a vida em outro estado 800 km da minha família de origem. Queria dizer como amo vocês, sinto muito, mas não deu…
Tentei usar chupeta, dar açúcar, acostumar meu filho a minha rotina, dar antibiótico no primeiro espirro, mas não conseguia, eu achava que febre era bom, que criança não precisava de leite de vaca mantive ele “pregado” no peito até os 2 anos quase. E o pior e mais insano de tudo, decidia tudo sozinha, não pedia opinião, porque vivia sozinha, não tinha nenhum argumento do porquê daquilo, tentei ser coerente e informada…sinto muito, mas não deu.
Tentei ter uma babá exemplar, que cuidasse do meu filho como eu, mas o resultado foi ele pregado na TV mais de cinco horas por dia, enquanto trabalhava insanamente para botar comida na mesa e dividia meu tempo com minhas saídas a noite, porque sempre me senti no direito de reconstruir minha vida, tentei ser uma mãe exemplar…sinto muito, mas não deu.
Sempre achei que o homem deveria aceitar meu filho e ponto, que isto não estava em discussão, e pasmem, não tinha vergonha de dizer que era solteira e tinha um filho que ficava com babá, enquanto eu enchia a cara! Tentei acreditar que eu era menos interessante por já ter um filho, sinto muito, mas não deu, ainda hoje não acredito nisso.
Encontrei uma pessoa “na night” e decidimos casar, ele assumiu meu filho como filho dele, namoramos pouco e nossa família se conheceu no dia do nosso casamento, que foi uma cerimônia esquisita, com um pastor que nunca ninguém tinha ouvido falar. Não teve bebedeira nem nada disso, eu queria que aquilo fosse para mim, meu filho – que levou as alianças – e meu futuro marido. Poderia ter feito diferente, mas não queria…sinto muito, mas foi o que deu…
Mudei de trabalho em trabalho e nada me satisfazia, até procurar uma formação de uma profissão que não existe no mercado e resolvi que isso seria meu caminho de vida, porque eu acredito que trabalho tem uma relação estreita com satisfação, amor e felicidade. Eu tentei ser rica e acreditar que dinheiro não traz felicidade mas manda comprar, sinto muito, mas não deu.
E quando meu filho mais velho estava com dez anos e a vida mais calma eu decidi…viajar? Não, ter outro filho, parido em casa, sem visitas até um mês, dormindo comigo, só mamando leite de peito, longe da chupeta, sem vacina, blábláblá. Mais velha era para o negócio ser mais equilibrado não é? Sinto muito, mas não deu…
Minha mãe morreu e no velório dela, muitas pessoas da minha família tentaram me convencer de que ela tinha feito tudo aquilo para preservar a família, juro que tentei acreditar nisso, mas sinto muito, não deu. Para mim minha mãe estava falando: “Filha seja livre!”
Estava decidida a ser mãe meio período e trabalhar no outro, porque acredito na importância da mãe em casa. Acreditava, sinto muito, mas também não deu.
Criei um projeto de um curso que forma pessoas em nada e faz uma tal de economia associativa, onde indivíduos apoiam indivíduos e o dinheiro não é determinante para sua participação. Queria conseguir explicar meu trabalho em duas palavras, sinto muito, mas não deu. Era para ficar em casa meio período, mas o negócio cresceu tanto que não consigo ficar em casa meio mês de tanto que viajo. Sinto muito, mas não deu.
Ficar casada administrando os conflitos do dia a dia, acreditando que ficar juntos para todo o sempre é mais importante que tudo. Sinto muito, mas nem essa deu. Em pleno inferno astral aos 37 anos eu olhei para mim e com muito amor eu disse: “Milene, nós tentamos, tudo que pudemos, mas não deu…”
Faço parte do seleto grupo de pessoas marginalizadas, aos trinta e sete anos, com dois filhos um de cada pai, separada, com uma profissão que não se explica, falando palavrão, com algumas tatuagens no corpo e de roupa curta. Cara, como eu tentei ser igual a vocês, juro, li dezenas de livros, chorei litros em terapias, corri de um lado para o outro, adoeci, mudei tantas vezes, eu tentei dias a fio da hora que abria meus olhos ao pijama que escolhia para me deitar. Sinto muito, como eu sinto, mas não deu.
Mas de tanto doer, tentando ser o que não sou, sobraram algumas coisas legais: Eu aprendi a não ter preconceitos religiosos, étnicos e sociais. Eu aprendi a não ter medo de tentar e errar. Eu aprendi a achar bonito o que não é perfeito, e de tanto achar bonito, não sei mais qual o referencial de perfeito, para mim você é lindo e perfeito! Eu aprendi que religião tem a ver com bondade e atos e não com nomenclaturas ou templos. Eu aprendi que pessoas sofrem e muito, independente de dinheiro, crença, raça e qualquer outra coisa que possa nos diferenciar. Eu aprendi que as vezes falamos coisas e fazemos outras porque o discurso posto em prática traz novidades que não esperávamos, aprendi a não julgar. Eu aprendi que família tem sua base em laços de amor e só, por isso, qualquer ser humano que me ame pode fazer parte da minha família. Eu aprendi que eu e meus dois filhos somos uma família, que eu, meus dois filhos e meu ex- marido, somos uma família, que eu, meus filhos e todos os outros homens ou mulheres que nos amem são nossa família. Eu aprendi que mulheres morrem e adoecem tentando dar conta do que esse mundo impõe como exigência. Eu aprendi que homens morrem e adoecem tentando dar conta do que esse mundo impõe como exigência. Eu aprendi que não existem perguntas mais cruéis que: “Tem certeza que você é isso?” ou “Tem certeza que você está infeliz?” ou “Porque fazer tanto drama por nada?” Eu aprendi que frases do tipo: “Dê graças a Deus por essa pessoa que te atura!” “Eu esperava mais de você.” “Um dia quem sabe você chega lá”, “Se coloque no seu lugar”, são tão avassaladoras moralmente que podem destruir alguém. Eu aprendi que violência física não se justifica, por nada. Eu aprendi que falar é bonito, mas que ouvir com amor cura tudo. Eu aprendi que qualquer trabalho tem um valor imensurável no mundo e que todo ser humano tem a capacidade de fazer coisas incríveis e transformadoras. Eu aprendi que pessoas mudam, porque o que está vivo muda. Eu aprendi que ter razão é uma coisa estúpida e cruel, que bom mesmo é estar certa do que é melhor para você, independente do que o resto do mundo pense a respeito disso. Aprendi a ser generosa, porque encontrei gente muito generosa na minha vida. Aprendi que não existe certo e errado, existe o possível a ser feito naquele momento. Aprendi que ser gentil é muito mais fácil. Aprendi que todos temos coisas boas e ruins, e que isso é uma realidade imutável. Aprendi que puta não é um xingamento para mulheres, muito menos ser filho delas. Aprendi que gay não é um xingamento para os homens ou mulheres, é uma preferência sexual. Aprendi a amar e respeitar o ser humano incondicionalmente e compreender que diferentes não são concorrentes, são simplesmente diferentes.
E por falar em concorrência, minha proposta para você que tudo “deu” é a seguinte: Se eu te contar que tudo que fiz não foi tentando ir contra você, mas na verdade tentando ser igual a você, fica mais fácil de fazermos as pazes? Fica melhor se eu contar que adoro ver como sua vida é toda bem estruturada e que fico imaginando como gostaria de ter nascido assim? Fica melhor se eu te disser que mesmo você sendo tão diferente eu gosto do que você é? Então te proponho, gostar de mim…me aceitar e reconhecer que tenho coisas boas, eu te proponho parar de me julgar, porque o que fiz foi o melhor que pude, te proponho ainda que sejamos próximos para aprendermos uns com os outros. Te entrego na mão a tarefa de me tirar da marginalidade e me colocar no mesmo patamar que você, o das pessoas que fizeram tudo que foi possível tentando acertar, mesmo as vezes errando. Te digo que não te ameaço sendo o que sou, que não vou destruir sua família, seus alicerces, suas bases, nem suas crenças, porque não quero te fazer mal por ser diferente, eu só sou o que sou. E como sou muito arrojada e como você é muito ponderado e juntos somos mais, proponho ainda aceitarmos todas essas diferenças que existem no mundo com o que temos de melhor e tirarmos todos esses que continuam a margem. Assim como eu existem um contingente enorme de pessoas doendo e doendo, acordando todos os dias olhando para a imagem imponente e intacta do indivíduo perfeito, morrendo pouco a pouco tentando fazer alguma coisa com isso. Eu te dou minha liberdade com base no amor, você me dá sua segurança com base na sua estabilidade. E juntos criamos uma sociedade livre, amorosa, segura e estável. E fique tranquilo, não tem nada de errado com a gente, só vivemos e levamos a vida de uma maneira distinta da sua, nem pior nem melhor, só diferente, somos felizes e para nossa felicidade ser completa só falta você acreditar nisso. Eu queria discorrer um texto de tantas linhas defendendo o meu ponto de vista, te odiando, e te falando tantas vezes o quanto você é preconceituoso, medroso e que sua vida é uma chatice, mas eu não acredito nisso…sinto muito, não deu. Pedir para fazermos as pazes foi o que deu. Me ajuda?