E se a gente mudasse o mundo?

A barreira de toda pessoa diferente, seja ela diagnosticada como neurodivergente ou não, é a cultura.
A cultura define o que o indivíduo deve ou não ser,
a forma de se comportar,
a maneira de existir.

Existir… essa é uma palavra que tem me atravessado.
O direito a existir, sem desempenhar, sem produzir — por princípio de direito, existir.

Quando uma criança diferente tenta existir nesse mundo, ela deve necessariamente matar um pedaço dela, ou deixar de existir para estar.

Imagine você um cenário onde cada criança que nasce pudesse, através do tempo, sem a intervenção de um adulto, perceber o lugar onde ela pode existir do seu jeito, fazendo aquilo que ela pode oferecer, estando em meio a todos — não como diferente — mas no seu lugar, que comporta seu estado.
Não estou falando que a criança não deve ser educada, nem que se eduque sozinha. Estou dizendo que ela tivesse espaço para aprender a partir da observação interessada de um adulto sobre ela, e que se adequa a ela — e não o contrário.

As neurodivergências, ainda que sejam uma forma diferente de funcionamento neurológico, só se tornam uma questão porque estão inseridas em uma cultura que é estabelecida por anos de repetição, criando modelos de funcionamento para as coisas.
Ou seja, quem patologiza a neurodivergência é a cultura.
A neurodivergência não ameaça a vida; ela ameaça o status quo, que, para nós, é a mesma coisa que a vida. Por isso, é vista como uma doença que necessita de cura, porque desestabiliza o estabelecido.

Fredric Jameson já dizia: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”

E a cura sugerida é que o indivíduo — no caso, a criança — se torne, no mínimo, um adulto da produção, do resultado, do desempenho, com todas as atribuições que uma cultura impõe para isso.
Perceba que todo processo educativo é feito para uma criança ser algo — ainda que esse algo seja uma pessoa boa — e não para que ela seja ela mesma.

A origem da necessidade de a criança se transformar nesse adulto do desempenho está diretamente ligada ao capitalismo, que é quem determina o que se deve ter para ser alguém.
Em resumo, a cura serve para manter a cultura — cultura essa que leva, em sua essência, o atravessamento do sistema de consumo que dita nossa forma de ser e de nos apresentar ao mundo.

E sejamos sinceros: a cultura do resultado que criamos para sobreviver não funciona mais. É dissociativa, destrutiva, doentia.
Como dizia Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço:
“O sujeito cansado não é mais oprimido por um outro, mas explora a si mesmo até o limite.”

Temos um ódio constante da nossa própria imagem, uma dívida perene conosco mesmos, uma necessidade infindável de retirarmos mais e mais de nós. A cultura do “sermos nossa melhor versão” ao invés de “sermos o que somos.”
O ódio é o combustível do desempenho.

Talvez os neurodivergentes, ou aqueles que não suportam essa sociedade por uma condição neurológica — esses que não produzem como queremos, que não fazem como deviam, que não desempenham o mínimo esperado, que não performam, que não conseguem corroborar com isso tudo — sejam os que sobreviverão em condições de mudar a sociedade num futuro onde estaremos mergulhados numa epidemia de psicopatologias — que já podem ser vistas agora.
Serão eles, os neurodivergentes, que suportarão encontrar a nossa loucura e nos salvar dela.

De tempos em tempos, surge na humanidade um tipo de pessoa que desperta em nós a necessidade de observar o mundo mais além.
Mas até isso acontecer, muitos já morreram, já se sacrificaram e já foram colocados à margem da sociedade, vivendo uma vida miserável.

E isso é muito sério.

Foi então que eu pensei:
E se a gente mudasse o mundo?
E se, quando falassem da neurodivergência do seu filho e perguntassem o que poderia ser feito para que ele se tornasse “um igual”, a gente adequasse o meio para que ele pudesse ser da forma como é?
E se a gente lutasse para deixar essa neurodivergência aparecer — e não ser abafada, contida ou manejada?
E se a gente não tivesse mais medo de nossos filhos não serem “adultos do resultado?”

Tenho tentado, como início, respeitar o que meu filho não dá conta de fazer.
Mudei a lógica: ao invés de me perguntar o que posso fazer, tenho me perguntado o que posso largar?
Apesar de odiar a normalidade do adulto do resultado que eu mesma me tornei, confesso que ainda tenho medo quando não consigo abandonar a fantasia de controlar o que ele pode se tornar.
Mas o mais incrível é que meu filho não tem medo dele mesmo. Esse medo, quem tem sou eu.

Como já dizia Sidarta Ribeiro, em Sonho Manifesto:
“Vivemos um tempo em que a ciência precisa servir à imaginação e ao amor.”

E se a gente mudasse o mundo  será que seríamos capazes de vê-lo como como Van Gogh?

Eu adoraria.

Meu filho, a criança errada.

João recebeu um diagnóstico de superdotação há pouco mais de dois meses.

E superdotação, para quem ainda vive na fantasia de John Nash e Einstein, talvez não consiga compreender que ela é também uma neurodivergência — e neurodivergência é, por princípio, uma forma diferente de ver, sentir e atuar no mundo.

Aqui eu venho falar do caminho que me levou a descobrir isso.

João sempre foi diferente, teve algo mais ou algo menos em lugares estranhos.

João sempre teve os olhos perdidos no horizonte, um jeito de estar sozinho dentro dele, uma certa tristeza inexplicável, uma solidão que eu nunca entendi.

E eu machuquei muito meu filho. Essa mania de estandardizarmos o que é normal ou aceitável quanto ao comportamento me fez ter uma raiva, uma frustração, um desdém enorme por ele — não o tempo todo, mas por muitas vezes.

Ele ouviu de mim inúmeras vezes que era perdido, preguiçoso, mas eu acho que o pior não foi o que eu falei. O pior mesmo era meu olhar para ele: um olhar de frustração, de desilusão, de desapontamento.

Foram muitas buscas por terapia para consertar esse brinquedo quebrado feito para atender aos meus desejos — porque é assim que vemos os filhos — para que ele pudesse me colocar no lugar de quem acerta.

Matar a individualidade e a peculiaridade do meu filho para me sentir satisfeita foi minha busca por muito tempo.

E agora eu vou falar da grandiosidade do João. Escrevo chorando, porque a magnitude dele se coloca em proporção à minha pequenez.

Mesmo tendo sobre ele o olhar da incapacidade, da inferioridade, ele se levantou todos os dias e fez o que eu pedi.

Colocou sua mochila, foi para a escola, onde foi duro se adequar; ali sentou por inúmeras horas para estar diante de algo que nunca aprendeu.

Ele se levantou todos os dias, fez o que eu mandei, tomou para si a culpa e pegou para ela a roupa do erro e da incapacidade — e, em silêncio, continuou.

Aceitou todos os meus atos de desdém e agressividade e, ainda assim, vinha até mim e me amava.

Eu nunca vi que ele estava fazendo o seu melhor, mas ele, João, sempre viu que eu fazia o meu melhor.

E fez tudo isso solitariamente.

Quando chegou o diagnóstico, eu compreendi quem era João — e ele compreendeu o que era ser João.

Recaiu sobre mim uma profunda admiração por essa pessoa que resistiu a um mundo de rechaço e, ainda assim, continuou.

Ele fez, levantou, estudou o que pôde, caminhou como deu e se alegrou pelas poucas vezes que recebeu de mim um gesto de concordância.

João é um rei.

Magnânimo, resiliente e, acima de tudo, cheio de um amor que eu talvez não possa ter nesta vida.

A “normose” e o pedido de toda uma sociedade para se ter uma criança dentro dos padrões quase me fizeram destruir o vínculo de amor que existia entre nós.

Quase matou a chance, nesta vida, de eu enxergar a beleza do meu filho.

Ainda não compreendo João na sua amplitude. Ainda estamos no caminho — mas agora, outro caminho. Agora eu quero descobrir e admirar João. Quero perceber cada nuance dessa pessoa que veio de presente para mim. Sem pensar num futuro, eu não quero ajudar João a ser normal.

Eu quero conhecer meu filho. João será, para mim, o meu humano de interesse — e nunca mais meu objeto de pesquisa.

Mas João, como é diferente, me compreende. Ele compreende minhas incompletudes, compreende que sou diferente dele, compreende que não fiz porque não sabia.

João é um neurodivergente com altas habilidades em muitas áreas, mas, acima de qualquer coisa, eu descobri que João é superdotado de um amor que nunca conheci em minha vida — o amor que aceita que o outro, que quer te mediocrizar, faz isso porque te teme.

Eu temi, muitas vezes, que meu filho não seria o esperado.

E hoje eu o admiro justamente por isso: porque ele nunca vai ser o que espero, porque eu jamais o compreenderei na sua totalidade.

João é muito mais que eu. Cabe a ele me conduzir no caminho que me mostrará que o mundo — por mais que se viva nele — é feito de mistérios e belezas que nenhum de nós viverá na sua totalidade.

Um conselho que tenho para quem vive a lida da maternidade, da paternidade: amor por filho é quando se tem paz. O que se faz por desespero é desejo de fazer deles uma imagem melhorada de nós, para que possamos egoicamente admirar — já que não somos capazes de fazer isso com nós mesmos.

Aceitar é o melhor dos mundos. Comece por isso, e o céu se abrirá para você.

Obrigada, João.

Ninguém muda por amor.

A lógica do amor é a não lógica.
Indução, dedução, inferência, hipótese, ou tudo que visa à determinação do verdadeiro ou não, não se aplica ao amar.
O amor, produto do conjunto de vivências que advêm do ato de amar, é criado pelo elemento único e não subtraível, que é o empírico, a prática.
Pratica-se o amar,
erra-se ao amar,
dana-se ao amar,
alegra-se ao amar.
O ato de amar não pressupõe vitória, nem tampouco acerto, subverte a lógica da causa e efeito, não tem ganho. O ato de amar é exercício e processo, que tem variáveis infinitas que nunca são controláveis.
Amor não é prêmio, assim como amar não é jogo.
A força do amor está em ser capaz de sair da abstração e tornar-se feito coisa entre nós.
A prática do amar impulsiona a vida, o que já indica sua visceral necessidade.
Mas o amor é, como demanda sua grandiosidade, dúbio, imatéria e substância.
O amor da imatéria é a essência da existência da dignidade humana, é o veículo transportador do tempo, a continuidade dos mundos, é o motivo da vida.
O amor da substância é um existir em realidade a partir da imatéria, é ato. E, por vezes — se não por sempre —, revolucionário.
Mas amor não é artefato de mudança, ferramenta de transformação, nem ao menos recurso de barganha para prova da existência.
Ninguém muda por amor, ninguém se transforma por amor. O amor não serve à nossa vil necessidade de transformação.
Ninguém muda por amor, jamais mudará. O amor não supera o sintoma.
O sintoma é uma forma indizível de falar, é uma forma singular de existir, é para onde o indivíduo foge quando não restou nada.
Sintoma não pressupõe mudança. Sintoma é um convite pessoal e intransferível à autoria. A autoria de tomar propriedade da própria vida é o que reescreve o sintoma e, por sua vez, reescreve a vida.
O amor não é lógico e, por não habitar esse espaço, não é capaz de produzir resultados.
O amor é um címbalo que retine no profundo da alma para que o compasso do mundo possa haver.
O sintoma é o jeito de viver que não constrói o caminho para que o amor deixe o imaterial e habite a substância.
Para habitar a substância e sentar-se à mesa, o amor precisa de um caminho de trabalho que o sintoma impede.
Amor vivido é amor que desencontrou do sintoma.
A potência do amor é construtiva, e o que reescreve o sintoma é a capacidade desconstrutiva de debruçar-se em si para o trabalho que materializa o amor poder existir.
Não se muda por amor, embora, creio eu, que aquele que leva o amor como filosofia da existência compreenda que não se pode viver sem ele e, a partir disso, entenda que a autoria da ressignificação de um sintoma deve existir para que ele possa permitir a existência do amor.
O amor não supera o sintoma. Deixe de crer que alguém mudará por amor para que você possa perceber que o amor existe, e que a prova disso é sua existência, e não a existência de alguém.

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