A menina recalcada e seus sonhos delirantes de fugir da solidão.

Essa sou eu. Talvez pudesse até usar isso como título de um livro: as inúmeras fantasias delirantes que criei em minha vida para estar ou ser em algum lugar de pertencimento.
Para a psicanálise, o recalque é um mecanismo psíquico de defesa que expulsa certos pensamentos, desejos ou memórias do campo da consciência, empurrando-os para o inconsciente, porque são inaceitáveis ou angustiantes demais. Recalque é algo que é demais para suportar.
Recalcar não é reprimir. Reprimir é conscientemente não querer que algo apareça; recalcar é um processo inconsciente que joga para um lugar inacessível algo que você não suporta ver, viver, lidar.
E é incrivelmente impressionante a capacidade que temos de viver sabendo de algo como se não soubéssemos. Saber algo não nos impede de viver achando que o impossível seja possível.

No meu caso, todos os meus recalques vieram acompanhados de um delírio. Sei que parece exagerado, mas não é — oxalá fosse.
Enquanto eu vivia minha vida como se não soubesse de algo que sabia, a permissão que me era concedida era delirar, encontrar uma fantasia que pudesse ser imaginativamente vivida para seguir nesse lugar que supostamente me dava um lugar.
E, cada vez mais, tudo que eu recalcava voltou.

Porque Freud dizia: o recalque retorna.
Um dia, lavando sua louça, estendendo sua roupa ou diante de uma cena corriqueira do dia a dia, aquilo que você escondeu volta e te devora. A realidade que destrói a fantasia é algo selvagem.
Nas minhas observações mais corriqueiras de todos os dias, eu tenho visto mais e mais delírios em torno de um tema brutal: o medo da solidão.
Por hora, recalcamos a verdade absoluta de que a maneira como estamos vivendo nossa vida e estabelecendo relações está nos levando significativamente para a solidão — e isso nos torna pessoas “suficientes”, esse conceito mais uma vez delirante e fantasioso, incapaz de ser aplicado. Sustentamos isso até que, em um domingo de sol, diante de algo lindamente exuberante como uma borboleta no quintal de casa, olhamos ao lado e não há ninguém para compartilhar.
Essa dor insuportável nos faz então buscar desesperadamente em alguém ou algo que nos tire disso.

Mas — porque toda história tem um "mas", já dizia meu pai — a saída que encontramos, ao invés de cultivo de relações, que demandam dedicação e trabalho, recalcamos agora verdades sobre aquilo que escolhemos como objeto de salvação — seja ele Deus, o outro ou algo — para criarmos outras fantasias e delírios que nos impedem de perceber que aquilo se dissolverá, e voltaremos para o mesmo desespero do qual imaginamos fugir.

Invoco aqui novamente (e invocarei muitas vezes) o título do meu blog: “o amor não capitaliza”.
Relações dependem de aposta, trabalho, paciência, cultivo, dedicação — tudo que nos demanda cuidado, atenção e renúncia. Creio que, acima de tudo, a renúncia da nossa invencibilidade e das fronteiras internas que nos impedem de ocupar territórios antes inexplorados.
Esse medo da solidão só pode ser aplacado quando percebermos que dedicar tempo para sua vida relacional te roubará títulos, carreira, dinheiro — e pararmos de delirar achando que é possível que tudo seja feito ao mesmo tempo.

O amor não capitaliza, mas ele te tira da solidão. Escolha sua luta.
Criar relações depende de uma trama fina e sensível de cuidado e apreço, dedicar ao outro seu olhar cuidadoso e real sobre ele, encontrar o humano no humano e suportar isso.
Sempre me volta uma frase atribuída a Rudolf Steiner: “amar é levar o outro matematicamente no seu coração”.
A amplitude dessa frase sempre me impactou: ver o outro como uma equação matemática de um resultado que fala sobre ela e que não pode ser transformado em outra coisa — mas que, ainda assim, pode ser o que se aposta para estar ao lado.

O recalque deve existir para que possamos viver em sociedade. Sempre algo, de início, deve ser escondido de nós mesmos para que possamos suportar iniciar algo.
Mas é preciso estar atenta, pois chega um momento em que nossas fantasias precisam ruir, para que possamos, pouco a pouco, habitar a realidade tal como ela se apresenta — com o que dela conseguimos suportar.
Se vivermos eternamente em delírio, certamente a solidão nos alcançará — seja porque você acreditou ser possível viver só, seja porque o objeto de salvação da sua solidão um dia se desfaz.

Ninguém, nem nada, salva alguém da solidão, porque a solidão não é um lugar de onde alguém possa ser resgatado. A solidão é um momento da mais pura e consistente realidade que se apresenta para você, em que você estica sua mão e, em realidade, ninguém te suporta — porque você não suportou a realidade de ninguém.

É isso que tememos.

Ao final, o que tememos é sempre enxergar aquilo que fizemos de nós mesmos.

Gosto dessa pintura de John Everett Millais (1851–52), que para mim representa a imagem do recalque e do fim de um delírio que quase nos mata.

Essa é Ofélia, personagem da peça Hamlet. Após ser manipulada e abandonada por Hamlet, e perder o pai assassinado, Ofélia enlouquece e morre afogada — talvez por acidente, talvez por suicídio.

Mas o que mais me intriga é que seu rosto está fora d’água.
Quando olho para essa pintura, vejo que Ofélia morreu da verdade que viu.
O que a matou, para mim, foi a verdade que ela respirou quando emergiu a cabeça para fora da água.

Quando o delírio acaba, a morte vem.
E o que nos resta é sempre a realidade — essa que sempre esteve ali: sobre Hamlet, sobre o pai, e sobretudo sobre ela mesma e que nunca conseguiu suportar.

A mulher que não sangra.

Todo mês, vejo escorrer pela minha perna um fio vermelho de sangue que me acompanhou por dezenas de anos. E me pergunto se essa será esta a última vez.
Será esse o último fio do tecido da cortina que, por quase toda a minha vida, me protegeu da realidade nua e crua de se viver?

Enquanto o sangue vivo escorre por nós, mulheres, a cada mês, ele nos dá a certeza libido — essa energia simbólica do desejo — ainda nos mantém em movimento.
Porque ainda nos importa o olhar do outro, para que possamos construir o nosso próprio olhar sobre nós.

O tempo de ser fértil, de produzir, reproduzir, desejar, nos faz amar o outro criando fantasias sobre quem somos e quem os outros são.

Agora, meu medo mora nesse olhar: o de cada dia em que esse fio se esvai pelo ralo do banho — e com ele, talvez, o tempo da vida em que eu ainda acreditava em todos os meus sonhos e fantasias que me mantinham crente.

A cada fio que se desfaz dessa cortina, menos me veem. O viço da beleza se esvai.
Pouco a pouco, fico com o que restou de mim. E tento, às duras penas, ter fé e coragem para me encarar, e lidar com a dor de deixar de ser o desejo desse “grande outro” que sustentou minha permanência neste mundo.

A cabeça não enevoa, como querem nos convencer.
O que acontece quando chega o tempo de despedir-se da função de ser produto para consumo, é que a visão — antes turvada por tudo o que poderíamos ser ou conquistar — enfim se abre à luz imensa e quase cegante da vida real.


Isso não enevoa.
Isso perturba.
Isso abala, desequilibra, dói.

A vida sábia encerra o tempo da fantasia para que a mulher possa sobreviver.
A mulher é a continuidade da vida quando pari.
Mas é a perpetuação da história quando envelhece.

Quando ela deixa de querer se ver pelo olhar do outro, e para de esvair sua força tentando sustentar a perturbação de viver para corresponder ao desejo alheio — ela se torna legado.
Não mais continuidade, mas permanência.
Não mais promessa, mas esteio.
Longevidade.
História que construiu nossa existência.

A mulher é o folclore.
A tradição.
A que gerou.
Ela é a memória do mundo.

A mulher que não sangra deixou o tempo de servir.
A libido já não sustenta mais a fantasia que inventamos para suportar o mundo.
Agora, a única coisa que sustenta a existência é o “deus” que ela é capaz de ver através dela.

Meu medo?
Por ora, que, quando vier o último fio, eu seja capaz de suportar a mulher que assomará por detrás dessa cortina.
E que eu seja capaz de perpetuar a vida que restar em mim.
Que eu consiga esquecer o outro.
E me lembre, enfim, de mim.

Quando eu parar de sangrar, quero deixar de ser mulher — essa narrativa em eterna construção pelo olhar alheio.
Quero tornar-me história.
Minha história.
E poder contá-la e recontá-la como parte do seguimento da existência.

Porque no ciclo que rege a eternidade, quando não se sangra mais, encontra-se o infinito. O tempo do “para sempre”.

A mulher que não sangra… virou eterna.
Ela não morre mais.
Ela é legado.

P.: Gosto muito dessa pintura de Rothko que se chama Vermelho Claro sobre Vermelho Escuro.
Ela representa, para mim, essa cortina que o vermelho vivo cria em nós para nos ajudar a sobreviver — e esse escuro ao fundo, que nos atordoa por não enxergarmos mais o que fomos, mas apenas aquilo que somos.

Rothko dizia: “As pessoas que choram diante das minhas pinturas estão tendo a mesma experiência religiosa que eu tive quando as pintei.”
Olhar para essa obra e lembrar do meu ciclo me faz chegar nesse lugar de quase encontrar Deus.

Como já dizia Criolo: “Não precisa morrer para ver Deus.”

João Batista, o que existiu para outro existir.

João, para mim, não é moço do inverno, da fogueira, da introspecção. Valha-me que tenho noção de que o mundo é grande, e que, por hora e lugares, João é, no mesmo tempo, o moço do verão, da luz.
Gosto de João na dor, no símbolo; gosto dele na lenda; gosto dele no ensino de ser aquele que se prepara para ser o segundo.
Nascer e morrer para que o palco para outro seja construído — numa sociedade onde se busca constantemente o desejo neurótico de ser alguém como primeiro, em algum lugar, na vida de outrem ou talvez na vida de todos — João sempre me trouxe o lugar que só quem tem envergadura consegue carregar: aquele que existiu para que outro pudesse existir.

Quem suportaria ser João hoje?
Quem viria para dizer: “Por mais que eu faça, ainda alguém fará maior”?
João é, em mim, aquele pedaço de lucidez que diz que sou comum; é aquele que não me deixa ganhar todas; é aquele que me afoga em mim mesma para que eu saiba que nem tudo é sobre estar adiante; aquele que caminha sabendo que vai morrer, e que, por mais que se faça, a humanidade vai adiantar-se de mim.
João é meu pouco diante do tanto do outro.

João é uma parte perdida minha que não tem a aflição da perda, que não quer ser tudo, que não veio para brilhar, que não veio para ser além, que me ensina a não ser especial.
João é sossego, é miúdo, é dia a dia, é ficar atrás, é aguentar, na história, todos os adjetivos que causam horrores na sociedade contemporânea da grandiosidade.

Estamos em época de João — talvez tempo de minguar, de aceitar, de parar; tempo de batizar o outro com nosso silêncio, de ficar em si, de ser ordinário, ganhar medalha por ser regular, aproveitar o lugar do trivial, de se deixar ser passável.

João é meu contentamento em ser humano, é o que me deixa ter amigos, é o que me faz afável, doce, é o que enche tudo de afeto, que substitui conselho por abraço, é o que me faz alegrar quando vejo no outro a beleza que ele tem.

Tempo de João, tempo de contentamento na sociedade da felicidade.
Viva João, o Batista.

PS.: Gosto de João nessa pintura de Leonardo: nem menino, nem velho, nem criança que brinca, nem sábio que ensina. João jovem, João que não sabe, João que sai da sombra por metade. Para mim, ela mostra que, antes da sabedoria, vem o aprender com a vida.

E se a gente mudasse o mundo?

A barreira de toda pessoa diferente, seja ela diagnosticada como neurodivergente ou não, é a cultura.
A cultura define o que o indivíduo deve ou não ser,
a forma de se comportar,
a maneira de existir.

Existir… essa é uma palavra que tem me atravessado.
O direito a existir, sem desempenhar, sem produzir — por princípio de direito, existir.

Quando uma criança diferente tenta existir nesse mundo, ela deve necessariamente matar um pedaço dela, ou deixar de existir para estar.

Imagine você um cenário onde cada criança que nasce pudesse, através do tempo, sem a intervenção de um adulto, perceber o lugar onde ela pode existir do seu jeito, fazendo aquilo que ela pode oferecer, estando em meio a todos — não como diferente — mas no seu lugar, que comporta seu estado.
Não estou falando que a criança não deve ser educada, nem que se eduque sozinha. Estou dizendo que ela tivesse espaço para aprender a partir da observação interessada de um adulto sobre ela, e que se adequa a ela — e não o contrário.

As neurodivergências, ainda que sejam uma forma diferente de funcionamento neurológico, só se tornam uma questão porque estão inseridas em uma cultura que é estabelecida por anos de repetição, criando modelos de funcionamento para as coisas.
Ou seja, quem patologiza a neurodivergência é a cultura.
A neurodivergência não ameaça a vida; ela ameaça o status quo, que, para nós, é a mesma coisa que a vida. Por isso, é vista como uma doença que necessita de cura, porque desestabiliza o estabelecido.

Fredric Jameson já dizia: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”

E a cura sugerida é que o indivíduo — no caso, a criança — se torne, no mínimo, um adulto da produção, do resultado, do desempenho, com todas as atribuições que uma cultura impõe para isso.
Perceba que todo processo educativo é feito para uma criança ser algo — ainda que esse algo seja uma pessoa boa — e não para que ela seja ela mesma.

A origem da necessidade de a criança se transformar nesse adulto do desempenho está diretamente ligada ao capitalismo, que é quem determina o que se deve ter para ser alguém.
Em resumo, a cura serve para manter a cultura — cultura essa que leva, em sua essência, o atravessamento do sistema de consumo que dita nossa forma de ser e de nos apresentar ao mundo.

E sejamos sinceros: a cultura do resultado que criamos para sobreviver não funciona mais. É dissociativa, destrutiva, doentia.
Como dizia Byung-Chul Han em A Sociedade do Cansaço:
“O sujeito cansado não é mais oprimido por um outro, mas explora a si mesmo até o limite.”

Temos um ódio constante da nossa própria imagem, uma dívida perene conosco mesmos, uma necessidade infindável de retirarmos mais e mais de nós. A cultura do “sermos nossa melhor versão” ao invés de “sermos o que somos.”
O ódio é o combustível do desempenho.

Talvez os neurodivergentes, ou aqueles que não suportam essa sociedade por uma condição neurológica — esses que não produzem como queremos, que não fazem como deviam, que não desempenham o mínimo esperado, que não performam, que não conseguem corroborar com isso tudo — sejam os que sobreviverão em condições de mudar a sociedade num futuro onde estaremos mergulhados numa epidemia de psicopatologias — que já podem ser vistas agora.
Serão eles, os neurodivergentes, que suportarão encontrar a nossa loucura e nos salvar dela.

De tempos em tempos, surge na humanidade um tipo de pessoa que desperta em nós a necessidade de observar o mundo mais além.
Mas até isso acontecer, muitos já morreram, já se sacrificaram e já foram colocados à margem da sociedade, vivendo uma vida miserável.

E isso é muito sério.

Foi então que eu pensei:
E se a gente mudasse o mundo?
E se, quando falassem da neurodivergência do seu filho e perguntassem o que poderia ser feito para que ele se tornasse “um igual”, a gente adequasse o meio para que ele pudesse ser da forma como é?
E se a gente lutasse para deixar essa neurodivergência aparecer — e não ser abafada, contida ou manejada?
E se a gente não tivesse mais medo de nossos filhos não serem “adultos do resultado?”

Tenho tentado, como início, respeitar o que meu filho não dá conta de fazer.
Mudei a lógica: ao invés de me perguntar o que posso fazer, tenho me perguntado o que posso largar?
Apesar de odiar a normalidade do adulto do resultado que eu mesma me tornei, confesso que ainda tenho medo quando não consigo abandonar a fantasia de controlar o que ele pode se tornar.
Mas o mais incrível é que meu filho não tem medo dele mesmo. Esse medo, quem tem sou eu.

Como já dizia Sidarta Ribeiro, em Sonho Manifesto:
“Vivemos um tempo em que a ciência precisa servir à imaginação e ao amor.”

E se a gente mudasse o mundo  será que seríamos capazes de vê-lo como como Van Gogh?

Eu adoraria.

Meu filho, a criança errada.

João recebeu um diagnóstico de superdotação há pouco mais de dois meses.

E superdotação, para quem ainda vive na fantasia de John Nash e Einstein, talvez não consiga compreender que ela é também uma neurodivergência — e neurodivergência é, por princípio, uma forma diferente de ver, sentir e atuar no mundo.

Aqui eu venho falar do caminho que me levou a descobrir isso.

João sempre foi diferente, teve algo mais ou algo menos em lugares estranhos.

João sempre teve os olhos perdidos no horizonte, um jeito de estar sozinho dentro dele, uma certa tristeza inexplicável, uma solidão que eu nunca entendi.

E eu machuquei muito meu filho. Essa mania de estandardizarmos o que é normal ou aceitável quanto ao comportamento me fez ter uma raiva, uma frustração, um desdém enorme por ele — não o tempo todo, mas por muitas vezes.

Ele ouviu de mim inúmeras vezes que era perdido, preguiçoso, mas eu acho que o pior não foi o que eu falei. O pior mesmo era meu olhar para ele: um olhar de frustração, de desilusão, de desapontamento.

Foram muitas buscas por terapia para consertar esse brinquedo quebrado feito para atender aos meus desejos — porque é assim que vemos os filhos — para que ele pudesse me colocar no lugar de quem acerta.

Matar a individualidade e a peculiaridade do meu filho para me sentir satisfeita foi minha busca por muito tempo.

E agora eu vou falar da grandiosidade do João. Escrevo chorando, porque a magnitude dele se coloca em proporção à minha pequenez.

Mesmo tendo sobre ele o olhar da incapacidade, da inferioridade, ele se levantou todos os dias e fez o que eu pedi.

Colocou sua mochila, foi para a escola, onde foi duro se adequar; ali sentou por inúmeras horas para estar diante de algo que nunca aprendeu.

Ele se levantou todos os dias, fez o que eu mandei, tomou para si a culpa e pegou para ela a roupa do erro e da incapacidade — e, em silêncio, continuou.

Aceitou todos os meus atos de desdém e agressividade e, ainda assim, vinha até mim e me amava.

Eu nunca vi que ele estava fazendo o seu melhor, mas ele, João, sempre viu que eu fazia o meu melhor.

E fez tudo isso solitariamente.

Quando chegou o diagnóstico, eu compreendi quem era João — e ele compreendeu o que era ser João.

Recaiu sobre mim uma profunda admiração por essa pessoa que resistiu a um mundo de rechaço e, ainda assim, continuou.

Ele fez, levantou, estudou o que pôde, caminhou como deu e se alegrou pelas poucas vezes que recebeu de mim um gesto de concordância.

João é um rei.

Magnânimo, resiliente e, acima de tudo, cheio de um amor que eu talvez não possa ter nesta vida.

A “normose” e o pedido de toda uma sociedade para se ter uma criança dentro dos padrões quase me fizeram destruir o vínculo de amor que existia entre nós.

Quase matou a chance, nesta vida, de eu enxergar a beleza do meu filho.

Ainda não compreendo João na sua amplitude. Ainda estamos no caminho — mas agora, outro caminho. Agora eu quero descobrir e admirar João. Quero perceber cada nuance dessa pessoa que veio de presente para mim. Sem pensar num futuro, eu não quero ajudar João a ser normal.

Eu quero conhecer meu filho. João será, para mim, o meu humano de interesse — e nunca mais meu objeto de pesquisa.

Mas João, como é diferente, me compreende. Ele compreende minhas incompletudes, compreende que sou diferente dele, compreende que não fiz porque não sabia.

João é um neurodivergente com altas habilidades em muitas áreas, mas, acima de qualquer coisa, eu descobri que João é superdotado de um amor que nunca conheci em minha vida — o amor que aceita que o outro, que quer te mediocrizar, faz isso porque te teme.

Eu temi, muitas vezes, que meu filho não seria o esperado.

E hoje eu o admiro justamente por isso: porque ele nunca vai ser o que espero, porque eu jamais o compreenderei na sua totalidade.

João é muito mais que eu. Cabe a ele me conduzir no caminho que me mostrará que o mundo — por mais que se viva nele — é feito de mistérios e belezas que nenhum de nós viverá na sua totalidade.

Um conselho que tenho para quem vive a lida da maternidade, da paternidade: amor por filho é quando se tem paz. O que se faz por desespero é desejo de fazer deles uma imagem melhorada de nós, para que possamos egoicamente admirar — já que não somos capazes de fazer isso com nós mesmos.

Aceitar é o melhor dos mundos. Comece por isso, e o céu se abrirá para você.

Obrigada, João.

Ninguém muda por amor.

A lógica do amor é a não lógica.
Indução, dedução, inferência, hipótese, ou tudo que visa à determinação do verdadeiro ou não, não se aplica ao amar.
O amor, produto do conjunto de vivências que advêm do ato de amar, é criado pelo elemento único e não subtraível, que é o empírico, a prática.
Pratica-se o amar,
erra-se ao amar,
dana-se ao amar,
alegra-se ao amar.
O ato de amar não pressupõe vitória, nem tampouco acerto, subverte a lógica da causa e efeito, não tem ganho. O ato de amar é exercício e processo, que tem variáveis infinitas que nunca são controláveis.
Amor não é prêmio, assim como amar não é jogo.
A força do amor está em ser capaz de sair da abstração e tornar-se feito coisa entre nós.
A prática do amar impulsiona a vida, o que já indica sua visceral necessidade.
Mas o amor é, como demanda sua grandiosidade, dúbio, imatéria e substância.
O amor da imatéria é a essência da existência da dignidade humana, é o veículo transportador do tempo, a continuidade dos mundos, é o motivo da vida.
O amor da substância é um existir em realidade a partir da imatéria, é ato. E, por vezes — se não por sempre —, revolucionário.
Mas amor não é artefato de mudança, ferramenta de transformação, nem ao menos recurso de barganha para prova da existência.
Ninguém muda por amor, ninguém se transforma por amor. O amor não serve à nossa vil necessidade de transformação.
Ninguém muda por amor, jamais mudará. O amor não supera o sintoma.
O sintoma é uma forma indizível de falar, é uma forma singular de existir, é para onde o indivíduo foge quando não restou nada.
Sintoma não pressupõe mudança. Sintoma é um convite pessoal e intransferível à autoria. A autoria de tomar propriedade da própria vida é o que reescreve o sintoma e, por sua vez, reescreve a vida.
O amor não é lógico e, por não habitar esse espaço, não é capaz de produzir resultados.
O amor é um címbalo que retine no profundo da alma para que o compasso do mundo possa haver.
O sintoma é o jeito de viver que não constrói o caminho para que o amor deixe o imaterial e habite a substância.
Para habitar a substância e sentar-se à mesa, o amor precisa de um caminho de trabalho que o sintoma impede.
Amor vivido é amor que desencontrou do sintoma.
A potência do amor é construtiva, e o que reescreve o sintoma é a capacidade desconstrutiva de debruçar-se em si para o trabalho que materializa o amor poder existir.
Não se muda por amor, embora, creio eu, que aquele que leva o amor como filosofia da existência compreenda que não se pode viver sem ele e, a partir disso, entenda que a autoria da ressignificação de um sintoma deve existir para que ele possa permitir a existência do amor.
O amor não supera o sintoma. Deixe de crer que alguém mudará por amor para que você possa perceber que o amor existe, e que a prova disso é sua existência, e não a existência de alguém.

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